sábado, 11 de agosto de 2007

Amor/doce abismo do universo abstrato

Olhei fundo para os olhos daquela mulher,...
e, mesmo na penumbra daquele buraco de humanidades,...
Consegui enxergar seus tristes olhos da noite,...

Disfarcei porque não queria constrangê-la,...
A inclinação de seu rosto também procurava disfarçar tal sentimento,...
Ambos sabíamos o quanto é perigoso revelar nossas fraquezas,...
Ah, e como somos fracos,...

Continuamos aquele teatro justamente para esquecer,...
E, procuramos nos distrair nos provocando,...
Sussurrava nos meus ouvidos seus segredos sujos de infância,...
Afinal, acabei revelando os meus,...
mas nem a vergonha estampada na minha cara,...
foi capaz de deter minha vontade de possuí-la,...
pura e simplesmente,...
como um capricho de criança,...
como um doce de criança,...

Tudo isso ela já sabia, apenas fazia tempo para adiar o encontro,...
E, continuava sussurrando lágrimas sépias de velhas fotografias,...
E tudo parecia ser tão real,...
tão comovente,...
tão miseravelmente humano,...
...e mesmo sendo verdade,...
tudo não passava de uma cena para impressionar...

Mas ela não queria apenas uma testemunha de suas vidas perdidas,...
Queria um cúmplice, uma vítima, um algoz,...
Alguém tão miserável quanto ela,...
Tão perdido quanto ela,...
Tão frágil quanto seus delicados cristais líquidos
expostos em sua face
cruamente derramada no chão,...

Nos abraçamos para não mais nos perder,...
Mas o vácuo com todos seus silêncios ensurdecedores,...
nos assustou,
E as vozes que antes pareciam ter desaparecido pra sempre...
Voltaram com tanta intensidade...
Que o cheio de vazio se tornou insuportável...

E a palavra amor escrita naquele vidro do tempo
caiu diante de nós sem que nada pudéssemos fazer...
Já nem os cacos queríamos juntar,
qualquer gota de sangue derramado poderia ser em vão,
e não nos arriscamos,
apenas deitamos, mudos, lado a lado,
na cama daquele quarto abandonado...
olhamos em silêncio para o buraco negro do teto empoeirado...
e, lentamente, deixamos ser tragados pelo
doce abismo do universo abstrato...


cortaruas, Iquiririm/São Paulo, 11 de agosto de 2007.

domingo, 5 de agosto de 2007

Fragmentos oníricos de uma viagem cósmica (para ler ouvindo Clair de Lune, de Claude Debussy)

...os monstros são belos, por mais assustadores que pareçam...

(...)

...Pessoa veio e me disse: “Trago em mim a palavra do desígnio morto. Fui como ervas e não me arrancaram”...

(...)

...chora mulher, chora tudo, chora até o que não tem...

(...)

...amamos o outro porque amamos a nossa dor...

(...)

...mas não fala, eles podem nos ouvir...

(...)

...memória de infância:...
...o segredo do menino era brincar de se esconder...
...e, quantos sustos ele pregou na parede...
...mas, o que ele mais gostava de fazer era fogo...
...sua alegria foi total quando conseguiu transformar-se em chama...

(...)

...escreve na minha lápide:
as borboletas deixaram de ser crisálidas...

(...)

...silêncio, eles podem nos ouvir...

(...)

...não precisa dizer mais nada, deixe que os grilos contem o resto...

(...)

...encontrar uma palavra não é fácil, por isso quando a encontrares, guarde-a com amor dentro de si depois de imantá-la com o véu sagrado do sentido...

(...)

...Barros, encontrei o “menino de ontem me plange”,
era uma menina,
sua profissão: prostituta...

(...)

...trabalhar com sentimentos humanos me atrapalham...

(...)

...o nada também me pertence Manoel...

(...)

...matamos nossa amizade e agora choramos sozinho...

(...)

...e o mundo caiu sobre nós como um raio partido...

(...)

...coragem, vai e domestica teus monstros...

(...)

... e depois dessa curta viagem pelo tempo da humanidade,
depois de deitar na posição fetal,
momento em que tudo se atravessou dentro mim,
todas as alegrias e tristezas do meu pequeno mundo,
eu derramei a lágrima universal,
e não tive vergonha,
porque estava com irmãos que acabara de fazer...
e a força pulsava dentro do meu estômago,
sentia a energia vibrar e já meu corpo não era suficiente...
e foi ali no muro das lamentações,
que o vômito cósmico inundou meu coração...

(...)

...tomei uma decisão, meu contrato social será este: desaparecer...

(...)

...mas fale baixo, eles podem nos ouvir...



cortaruas, São Paulo, 4 de agosto de 2007.
(dedicado aos irmãos do Comunindios, muito obrigado pela acolhida)

Mímicos do apocalipse

1.

Esse som alquebrante
O branco esta fugindo de mim
O barco está rugindo no mar
O arco está urgindo no ar
A flauta está mugindo
Muito aliterante
Ali errante
Berrante
Beirando
o abismo
sobre o mar
bramante
no azul manto
em líquido canto...

2.

...ah, o choro do vento,
o suspiro do pássaro,
na marca do rastro
que na fugidia sinuosidade de seu traço
esqueceu seu laço,
com todos seus compassos
e abraços desbotados
na amargura de dias cansados.
Em líquido canto
as ondas dos dias
de areias salinas
e gostos sentidos
de tardes vermelhas
no horizonte dos idílios...

3.

...oito pássaros se recolhem
a terra abre oito ventres
e dentro deles nascem filhos
já armados de sentidos
oito escudos indecisos
e uma penosa arma laminada
na divisão de dois quadrados
resgatando os naufragados
dos interesses submersos
dos trompetes químicos
cômicos
cínicos
mímicos do apocalipse...

Alice Casanova, Luciano Ruas e Daniel Gomes
Casinha/Santo Antônio de Lisboa/Desterro, setembro de 2002.

quarta-feira, 1 de agosto de 2007

...estou com sede...

....acordo febril e suado...

...sua preocupação é delicada... ...ela me dá de beber...

.......................viaja comigo no delírio noturno...........................

....segura minha mão...
me aperta contra seu peito...
diz coisas que não posso ouvir...

...mas, o calor do seu corpo me protege e já basta...

...já não me importa a febre que carrego comigo, tão pouco a costumeira inflamação na garganta....

...pois navego tranquilho no corpo que me alimenta....

...sem fantasmas e sem culpas...

...“pois, navegar é preciso”...

...e, viver, muito mais...

cortaruas, 01 de agosto, Iquiririm/São Paulo, 2007.

segunda-feira, 30 de julho de 2007

7 instantes de melancolia (dependendo da ocasião, alguns textos merecem ser revisitados, por mais piegas que sejam)

1

Semanas, dias e infinitas horas já se passaram,
sinto que os sentimentos não passam,
não querem passar e não pretendem seguir adiante.
A inércia como consolo, exaspera-me.
Ao sumidouro todos estes sentimentos diarréicos.
À fossa toda esta angústia.
À merda todo o passado.


2

Quanto amor estancado.
Quanta mágoa acumulada.
Somos filhos da intolerância.
Sobrinhos da miséria cotidiana.
E netos renegados das paixões frustradas.
Quanta solidão e tão pouco sentido.


3

A consumição rasga o corpo inteiro.
Espoliados somos da carne e dos desejos.
A fartura de tantas peles nunca é suficiente.
Os abraços enlaçados não querem exprimir nenhum afeto.
Quanto mais nos devoramos mais sentimos fome.
De tanto digerir o vazio de peles nos tornamos delgados.


4

O que vejo nos olhos são apenas sombras e penumbras.
Suas imagens refletem o abismo do deserto ocupado.
A sede do instante tátil nos lança à procura de um corpo.
O labirinto geográfico não quer revelar seus entes perdidos.
Cansados do impossível, descansamos à beira do córrego seco.


5

A medida do tempo da melancolia equivale à medida do tempo da insônia.
De tantas perdas e sonos mal dormidos construímos uma imensa desilusão.
O sonho da alusão não cabe nesta imensidão.
Inventamos outra coisa e descobrimos a encarnação.
Que por detrás de párias intenções, sempre existe uma insubordinação.
De entes que não se cruzam e não querem compreensão.


6

No caminho de cruzes ilhadas, muitas encruzilhadas mal cruzadas.
Os desterrados de corpos e sentimentos perdidos carregam solitários suas cruzes.
Suas fisionomias de entes delgados assustam qualquer um.
Como foi possível seres que eram de puras peles,
transformarem-se agora em ossos puros?


7

As peles perguntam pelo ente,
os ossos respondem que já foi.
Peles e ossos não se entendem, pois precisam do ente.
Ao final, a dor do ente não desmente e diz assim o último refrão:
a tragédia da vida não é dividida em atos,
é um ato contínuo.


cortaruas, Desterro, 05 de setembro de 2002.

quarta-feira, 25 de julho de 2007

...Sonhando acordado 2...(para ler ouvindo Cello Suites de Johann Sebastian Bach)

O dia amanheceu como todos os dias, a luz explodindo desde o firmamento, iluminando tudo que atravessasse seu caminho; mas sua precisão física em descortinar a escuridão, não possui a mesma eficácia quando se trata de seres, especialmente, os humanos...

(...)

Na grande polis de concreto, uma diversificada fauna de entes vê e se deixa ser vista na esperança de que alguém possa reconhecer aquilo que todos trazem dentro si, um pouco de humanidade e tudo de solidão... Embora fosse esse o desejo contido, todos, bem ou mal, sabem da imensa dificuldade que é encontrar e ser encontrado pela humanidade do outro, pela sua solidão...

(...)

Aqueles que se encontram sob a doce claridade da estrela solar, desafortunadamente acreditam que sua luz é suficiente para revelar o outro... Mas, ao contrário da fotografia e dos ditos da ciência, encontrar o outro não significa só enxergá-lo ou tocá-lo com as mãos... Sentir está para além do gesto físico da percepção banal e rasa do olhar... O próprio toque, que antes parecia ser a chave mestra que abriria os sentidos químicos que faria do outro uma entidade especial e singular no mundo, foi economicamente substituído pelo controvertido mercado de corpos...

(...)

Tudo está em exposição, tudo está à venda, tudo é uma mercadoria... E nesse grande espetáculo cultural, “seres humanos”, ou melhor, corpos humanos são tratados da mesma forma que qualquer outro objeto de consumo... vale a lei da oferta e da procura... vale a lei da mais valia do lucro... Não se trata de encontrar culpados, mas de constatar fatos... todos que servem e fazem o jogo desse sistema, perdem... e aqueles que acreditam no poder da hierarquia já perderam... será!?...

(...)

Afetos jamais se barganham...

(...)

Mas de nada adianta a consciência destas questões, porque todos já se encontram embriagados pelo gozo alienado do olhar... Ver, mais do que sentir, se tornou um vício, uma droga poderosa... Nas ruas estreitas do centro da capital ou nos grandes descampados de trânsito engarrafado, uma legião de flâneurs sai em busca de seu obscuro objeto de desejo... Mesmo comprimidos pela multidão e afogados pelo duro trabalho cotidiano, continuam entorpecidos... Inconscientemente ou conscientemente motivados pelas pulsões visuais mais primitivas e arcaicas, deixam se tragar pelo buraco abissal aberto no espaço pelo corpo do outro... Mas, o engano é fatal quando descobrem que o corpo que ali se encontrava não passava de um simulacro manequim de suas próprias fantasias, de suas caprichosas expectativas de redenção, amor e encantamento...

(...)

E quanto mais olhamos, menos enxergamos... e, tragicamente, na mesma medida, quanto mais tocamos menos sentimos... e nossa humanidade a cada dia se desgasta com o excesso de civilização, propaganda e profissionalismo servil... e de nada serve ser um bom profissional, quando o mais importante se perdeu, a consciência de que todos servimos ao mesmo sistema ordinário que nos aprisiona, corrompe, divide e escraviza... e, mesmo sabendo disso tudo, comemos uns aos outros na vã tentativa de salvar-nos a nós mesmos...

(...)

Solidariedade se tornou uma palavra vazia e descartável...

(...)

De fato, nunca fomos humanos, forjamos uma idéia abstrata de ser humano e desde então tentamos atingi-lo... e já se passaram dois mil anos dessa longa história... e aqui nos encontramos cuspindo uns nos outros nossas neuroses de culpa e fantasias egocêntricas... e a cada dia nos tornamos fracos com tantas perdas de sentido, de corpos que se atravessam atravessados pelo secreto desejo de possuir sem antes sentir o mistério abstrato e original que cada um carrega dentro de si... e a perda é total quando subestimamos esses corpos, subestimamos o que sentem, suas histórias de afetos e desafetos... mas há uma esperança, quiçá deveríamos furar nossos olhos... ou quebrar o espelho que nos reflete... ou rasgar a fotografia que nos representa... apagar de vez o nome que nos identifica... nos afogarmos na própria solidão até aprender que para reconhecer o outro, devemos amar e respeitar sua solidão, pois é justamente esse silêncio atemporal e enigmático que mais nos aproxima da idéia que criamos de ser humano...

(...)

...nós somos sozinhos...


cortaruas, Iquiririm/São Paulo, 25 de julho de 2007.

quarta-feira, 27 de junho de 2007

Sonhando acordado 1:

...Manuel de Barros passou por aqui hoje; li com ele o mesmo livro que lemos na praia aquele dia; na verdade, interessava ao poeta ler um ou dois trechos, rapidamente, antes de partir assim como chegou, de supetão; mas, antes mesmo do poeta encontrar a parte do grilo, pois acredite, ele desejava se lembrar em que circunstância poética se encontrava o inseto, a primeira frase que leu logo que abriu seu livro foi: "Com pedaços de mim eu monto um ser atônito".; o peso destas palavras já não o comoviam mais como da primeira vez quando as tinha escrito, assim expressavam o vazio de seus olhos que pareciam flutuar desde o fundo de sua alma; nem sinal de confusão ou perturbação estética; sua pausa silenciosa e quase invisível no tempo se revelava uma tortura para mim; se para ele essa questão já não era mais nenhum problema já que sua poesia era a resposta, para mim ainda faltava reunir os pedaços para construir meu ser atônito na poesia, na arte. Barros, com sua poesia arqueológica das imagens da natureza e da cultura já havia superado há muito tempo os dilemas existências criados pelo labirinto da filosofia ocidental, do capitalismo transcontinental; para ele o caminho do ser é tão simples quanto construir um brinquedo com palavras: “Besouros não trepam no abstrato.” (...) Continuamos a procura pelo grilo nas páginas e ainda deu pra ler, an passan, “O menino de ontem me plange.”; lembrei que quando lemos esta parte, submergidos pelo ócio da areia do forte, nos olhamos com cara de interrogação já que não sabíamos o significado da palavra plange. Significa chorar lamentando-se, soar tristemente. Agora sabemos e assim posso reunir mais um pedaço de mim em você. E o velho Barros continuava atrás do grilo e eu atrás do velho, de suas palavras e na página 15 do Livro sobre nada, 1ª PARTE, Arte de infantilizar formigas, terceiro ponto (3.), 5ª linha, o grilo surge e com ele o sorriso cúmplice e camarada do poeta; sua procura tinha terminado e o sentido da sua origem na trama poética, revelada enigmaticamente através do som murmurado de sua voz atemporal; “(...) Grilo é um ser imprestável para o silêncio”., mas quem “falava bobagens conspícuas” era o doutor - emendou. Sorriu para mim e foi embora. (...) Qual o sentido dessa procura? Intui que esta aparição imagética deste mestre das palavras de encantar foi mais uma montagem poética para nos deixar atônito, nos disjuntar... Mas, sem pedaços de ser, de mim ou de nós...
Embora faltem muitos pedaços do meu próprio quebra-cabeça existencial, sua presença invisível naquele instante poético me deixou ainda mais atônito, perturbado com quantas coisas temos que fazer e percorrer para superarmos tal estado de coisas fúteis e banais... Ao cabo desta experiência ficcional, entendi que quando superarmos este estado de perturbação estética e letargia mental, Barros retornará com seu sorriso cúmplice e nos dirá novamente que o “Grilo é um ser imprestável para o silêncio”, mas que é o doutor quem fala bobagens conspícuas....

cortaruas, 08 de junho, Iquiririm/Vila Indiana/Butantã/São Paulo, 2007.

terça-feira, 26 de junho de 2007

À insônia muriliana
para Murilo Mendes

Negar o sono e permanecer acordado povoando o entre mundos de monstros insoniados ou dormir e esquecer tudo, substituindo o princípio de realidade pelo princípio de prazer e, com isso, libertar nossa imaginação da consciência normopata de uma realidade supra-vigiada para enfim refugiar-nos numa terra estrangeira?!
Negar o sono ou dormir efemeramente para que os opostos não encontrem mais razões justas para perturbar nossa jornada num território nunca antes explorado no mundo dos sonhos sem culpa?!
A complexidade sensível. O duelo dos opostos em fragmentos poetatéticos. Devaneios surreais de imagens em ritmos acelerados pelo tempo eletrônico do "bit" e do bisturi aéreo.
A insônia muriliana fatigada pelo tempo colorido em sobre-oposição do tempo em preto-branco carmesim.
Negar o sono ou morrer definitivamente até que os sons tecnificados de nossa urb invadam nossos espaços condicionados de cimento quadrado e cores pastéis, para ali depositar toda sua atmosfera contaminada de detritos banais, delírios edificadores e objetivos aniquiladores?!
A insônia da luz que se lança sem parar na tentativa de deter a obscuridade. A insônia do farol. A insônia do barco, que busca incessantemente um porto seguro. A insônia do porto seguro que nunca segurou nada além do seu próprio porto... A insônia da girafa que come para não ser comida...
Negar o sono ou morrer diante de todas as circunstâncias mítica-históricas que dizem: um dia o herói retornará, não para nos salvar, mas para se juntar aos milhares de heróis vencidos na demência de salvar o mundo?!
"Um verme rói - enorme roer - / Um verme rói minuciosamente / Desde que o tempo sentou-se sobre si / A trombeta ovóide".[1]
A insônia do verme ecumênico... que pensa conciliar o particular com o universal. A insônia da tesoura a insônia do dicaz, pois, quando a tesoura corta... o dicaz dá gargalhada... irônico cinismo de quem acredita apenas na mentira universal. A insônia do plantão 24 horas na televisão da janela mundial. A insônia do sapato que esmaga sem remorsos o destino imprevisível de baratas voadoras... A insônia do revólver-bala que abala as estruturas mais sólidas com sua música fúnebre e definitiva... A insônia de Heráclito nostálgico e cabisbaixo sentado a beira-rio...
A topografia da insônia abarca o universal e o particular, o branco, preto e colorido, as ondas vibratórias das constelações perdidas, a consciência da moral penitente, o olhar melancólico do roedor, o ruído histérico do faminto, a bala perdida do policial notívago, a carruagem dos tempos, os ready-made de Duchamp, os rituais dos aborígenas australianos, o insoniar do morto milenário, o feltro banhado de Beuys, o nó da espadarte de dois gumes, a insônia do diafragma com problemas de respiração, a insônia obsessiva de escrever e descrever situações de improviso, mas que incomodam, acomodam e não deixam dormir.
Negar o sono ou morrer, até que as astronaves da insônia venham e declarem o juízo final da insônia.

cortaruas, fevereiro de 2001.

"(...) Waltercio é um propositor de simulacros em decomposição, armadilhas conceituais, máquina produtora de imagens e textos em perpétuo afundamento. Sob o (d)efeito anestesiante de seus livros, de suas esculturas, de suas imagens para-textos, somos tragados pelo nosso próprio buraco abissal, aberto pela consciência de que para ler, temos que escrever a partir de uma posição aperceptiva do objeto, isto é, perceber o objeto não é olha-lo de perto ou tocá-lo com as mãos, basta que executemos aquilo que Barthes denominou de execução do Texto. Executar o Texto para não ser executado pelo objeto.
Depois de executado, topamos novamente com a inércia de todos os dias, os mesmos objetos em nossos quartos, em nossas salas, as mesmas cozinhas pálidas e banheiros infinitamente brancos, os mesmos quadros, os mesmos livros, aquela cor que com o tempo começa a desbotar da parede entre manchas e fissuras. Todos estão ali, todos aqueles objetos que se afundam na paralisia do cotidiano, que se reproduzem obsessivamente nas imagens de televisão que assombram na mesma medida que paralisam. Entre o terror do desconhecido e o consumo do conhecido, somos assolados por um sentimento de vontade e recalque, de posse e desprendimento, de desejo e renúncia. Queremos fugir, mas não encontramos lugar que nos possa aquietar; o desassossego é maior quando descobrimos que o fantasma que nos persegue se encontra em nosso próprio pensamento: é saber que não sabemos nada, é saber do perigo que corremos quando não sabemos, é saber que a verdade não passa de uma grande e sedutora mentira. Como escapar da linguagem, do seu poder legislativo, dos supostos métodos científicos que nos conduzem a uma interpretação sempre “adequada” e que nunca escapa ao acúmulo de metáforas inquiridoras? Não nos parece muito difícil responder a esta pergunta quando Barthes nos ensina, a partir de Lacan, que “a ‘realidade’ mostra-se, o ‘real’ demonstra-se; do mesmo modo, a obra vê-se (nas livrarias, nos ficheiros, nos programas de exame), o texto demonstra-se, fala-se segundo certas regras (ou contra certas regras); a obra tem-se na mão, o texto tem-se na linguagem” (BARTHES, 1971: 56). A questão não é saber o que escrever, mas como escrever a ladainha que nos ensurdece e nos deixa cegos cotidianamente.
Porque deveríamos escrever sobre a suposta transcendência da arte quando o artista da desconfiança, cansado e ensimesmado repete pra si mesmo: já não ouso as pessoas nas ruas, nas conversas, nos salões de arte, nos vernissages sempre celebrativos e espetaculares; as pessoas se divertem, falam, riem, bebem, comem, e eu não ouso nada; e deveria ouvir alguma coisa; mas eles insistem, não param de falar, se queixam, elogiam-se mutuamente, conspiram uns contra os outros, contra a arte, e, afinal, contra si mesmos."

Trecho da dissertação de mestrado, Dos Livros de Waltercio Caldas aos Textos da crítica contemporânea, defendida em 2003.
Ferro/Forja/Ferreiro

Caras, rostos, figuras e figurões
Imagens imaculadas sem dor, nem piedade
Toscamente malhados na bigorna que quer amor...
Intenso. Furtivo. Passageiro.
Rápido. Veloz.
No golpe que forja espírito.
No ferro que fere alma.

Não importa. Eu quero de novo.
Mesmo no impossível feroz da suave mentira.
Dita. Irrefletida.
Na bruma volátil de todos os dias.
Que inspira desejos clandestinos.
Vestígios de sentimentos perdidos.
Na aurora de madrugadas frias.

Bestial esta vida,
De morte, vida e desejos de todos os dias, meses e anos
Que se perdem de vista.

Na obstinada ilusão de minha viagem, calço botas com luvas finas,
e, lentamente caminho,
passos largados, loucos, e, sobretudo, arriscado,
na trilha do crepúsculo d’onde brotam morros cerrados.

Neste sendero luminoso do possível,
Vislumbro sonhos e estrelas,
Esperançosos que um dia,
nós,
homens, mulheres, velhos e crianças,
possamos quem sabe encontrar,
o Ser Ferro de cada dia.

cortaruas, Desterro, 1999.
Desterrado de mim,
em areias úmidas e desertas,
naquela praia sem nome, esguia e cheia de passagens secretas,
de ventos desafiadores e pedras costeiras,
eternas companheiras das rebentações salinas;
qual mar denso de espumas etéreas,
que fará o horizonte marinho de encarnações espessas?...

Esparso de mim,
em descarnados lençóis de azul celeste,
fitando alto o manto infinito de esperança estrelar;
especulando planetas remotos e sonhos distantes,
sob a violeta aurora que anuncia um dia escaldante...

Disperso de mim,
em passos marcados de um caminho incerto,
no movimento inconstante do receio e do furor,
da vontade e da recusa, da perda e do amor...
com os pés molhados de águas escaldantes,
experimento a aventura de pescadores distantes,
me lanço alto mar a procura de uma amante,
na busca enigmática do encontro entre dois semblantes...

...quando este dia chegar,
quero ter a certeza que este amor,
seja tão voluptuoso, ardente e delirante,
quanto estás águas rubras, densas e ondulantes...

Mareado de mim,
Com tantas voltas desconcertantes
De dias calados sobre correntes precipitantes...

(...tal viagem ainda incerta,
não existe cartografia definida
e nem porto de espera...)

Espumado de mim,
em estado gasoso dos mares sem fim,
volatilizando suspiros das tantas sereias esquecidas,
dos tantos náufragos anônimos,
e das tantas ilhas perdidas...

À deriva de mim
En la melancólica noche de luna llena,
De la nave va,
De los sueños vano,
Y de la muerte/vida, quizá...

Afogado de mim,
Solito no más,
Abraçado apenas no sorriso irônico da âncora já sem corrente,
Dos dias já sem presente...

No profundo abismo de águas submarinas,
Quando nada e tudo se perde e se afoga,
No fundo desprovido de segredos de luz,
Sem amante ou quaisquer sereias esquecidas,
Empedernidas,
Do fundo já sem fundo,
Sem náufragos anônimos ou tesouros perdidos,
Lá,...
Esquecido de mim, esquecido de todos,
pousado na superfície funda das areias escuras e dos sentimentos extintos,...
...numa estrela de mar, de terra e de fogo
irei me transformar,
mas, por favor,
não me encontrem,
pois submerso quero ficar...
(sabe-se lá, se as pontas de minha estrela poderão lhe machucar)

cortaruas, Desterro, 05 de março de 2007.
Receita imagética n. 1

Tomar 4 pilulas azuis por dia.
Uma erva na cabeça e outra na água ardente
3 colheres de chá de mariri
1 colher de chá de chacrona.
Meditar uma hora na posição pássaro silvestre.
Imaginar um sobrevôo na cordilheira dos Andes.
Dar 7 voltas no Aconcágua
e repousar eternamente nas águas cálidas do vulcão Poseidon.

Receita imagética n. 2

Num dia de forte vento empinar uma pipa elétrica.
Aguardar o vento nordeste e deixar-se carregar para o sul continental.
Voar com os amarelos pássaros metafísicos.
Atravesar o estreito das estrelas cadentes até mergulhar
Profundamente nos solitários icebergs do oceano antártico.


cortaruas, 12 de março de 2001.
A janela nos espia lá de fora,
e aqui dentro espiamos um ao outro,
tateando entre dedos e peles aquilo que à vista não se vê;
somos espias curiosos, não nos satisfazemos só com o olhar,
queremos mais e descobrimos na superfície tátil de nossas peles
a porosidade profunda que vela pelos nossos entes.

Sim, somos espias curiosos, mas também somos cuidadosos,
pois sabemos que em cada poro de nossas peles contém vidas e sonhos que devem ser protegidos e amados.

Nesta aventura de peles e sonhos,
também descobrimos outros poros geográficos,
territórios de um corpo que devem ser explorados e sentidos
em cada parte do espaço tocado.

Ali, no interior de cada poro,
inventamos uma morada
com infinitos quartos, salas e corredores,
de onde é possível avistar uma grande janela
pela qual nos vemos o que de fora não se vê.

cortaruas, São Paulo, 02 de setembro de 2002.
As asas passaradas gotejam luzes de sol magenta,
O som borbulhante das ondulantes salinas,
repercutem intenso o gesto do absoluto,
a gaivota obliqua a paisagem transparente,
na luz do horizonte prateado,
a silhueta nau navega uma linha misteriosa,
os passos estão molhados agora,
todo o corpo é invadido por uma sensação submarina,
o sobrevôo de asas espreitam novamente,
os pássaros aguardam o último instante do cruzeiro,
aquele ente delgado e luzidio,
não hesita e atravessa a imensa alameda de asas,
o vento agitado anuncia um dia vindouro,
iluminados por asas e luzes,
sentimos a metamorfose constante da vida,
a natureza impetuosa e onipresente,
vibra carnal naquelas ondas infinitas...

cortaruas, Praia do Santinho, Desterro, 27 de outubro de 2002।
A língua que me corrompe a carne
é a mesma língua que suga teu gosto,
veneno doce de perigo ácido,
faz derreter sensações
suspendendo o pensamento em palavras corrosivas,
no olho de tempos perdidos.

A língua, assim como o indomável,
quer transgredir o limite de espaços e tempos,
e curiosa quer descobrir na carne
o objeto de sua existência.

Inúteis palavras que não satisfazem
o desejo de uma língua inquieta,
ansiosa para experimentar
suas habilidades entre parênteses,
na vertigem de corpos em transe.

Na ponta da língua,
um fio de lâmina se esconde,
afiado entre limalhas salivas e secretos sussurros...
...epiderme nenhuma esta à salvo,
desta língua rubra, voraz e desfibrante,
que faz de seu objeto
a vítima sempre caprichosa
de seus desejos mais penetrantes.

Em cada poro da língua,
Centelhas de brasas é possível avistar,
Lavas salivas começam a brotar,
fundindo a pele mais doce
e transformando-a em mel escaldante...

No toque ardente da língua,
o corpo inteiro vibra a corrente de líquidos poros,
docemente melados sentimos a fusão de peles,
na carne o brasão da língua apenas insinua seu território,
marcados tão somente por uma língua de fogo,
entregamos nossas peles
aos vapores suspiros mais incandescentes...

Na chama da língua,
o fogo incendeia desejos (in)contidos,
num fogo que consome e é consumido.

cortaruas, Desterro, 30 de outubro de 2002.
A ponte, o trampolim e o abismo.

...no abismo que nos separa,
existe uma ponte em construção e um trampolim...

...a ponte está sendo construída de sonhos e afetos...

...o trampolim foi colocado ali pelo impulso das emoções...

...a ponte levará muito tempo para ser construída,
pois sonhos e afetos não são fáceis de se juntar...

...já o trampolim encontramos em qualquer lugar,
pois sempre damos saltos maiores que o nosso querer...

...a ponte é o sonho conseqüente para dois territórios se aproximarem...

...o trampolim, o desejo inconseqüente quando alguém quer pular...

...a ponte não precisa ser de cimento, nem de ferro,
basta que seja segura para se atravessar...

...já o trampolim pode ser feito de qualquer coisa,
porque importa mesmo é pular...

...mas, também pode acontecer o inverso,
uns, podem querer usar o trampolim para atravessar,
e, outros, a ponte para pular...

...mas, assim não quero pensar,
prefiro sonhar que quando estivermos prontos,
a ponte iremos atravessar...

...mas se a ponte não estiver pronta quando esse dia chegar,
pode ter certeza que do trampolim vou saltar e
voar, voar, voar...

lumenino meditando a beira do abismo........

Desterro, 27 de fevereiro de 2003.
A coisa cuisada

A coisa acossada,
cunha à cozinha,
cozendo coisinhas,
coisaram o coito,
coitada da coisa,
cuisada na cozinha.

cortaruas, Desterro, agosto de 2002.
Calendário de todos os meses

Segunda, inventamos...
Terça, ensaiamos...
Quarta, apostamos...
Quinta, jogamos...
Sexta, perdemos...
Sábado, choramos...
Domingo, esquecemos...

Segunda, sou louco...
Terça, sou são...
Quarta, não sei...
Quinta, talvez...
Sexta, sem lei...
Sábado, no xadrez...
Domingo, na escassez...

Segunda, não posso...
Terça, não quero...
Quarta, não vou...
Quinta, quem sabe...
Sexta, se encontrar...
Sábado, nos embriagar...
Domingo, nos devorar...

Segunda, de Aurora...
Terça, de Sol...
Quarta, de Lua...
Quinta, de Mercúrio...
Sexta, de Vênus...
Sábado, de Estrelas...
Domingo, de Cama...


cortaruas, Desterro, 04 de setembro de 2002.
Fragmento nº 1

...o tempo passa, o homem caminha,...
...sem direção, sem pretensão, sem nenhum tostão...



Fragmento nº 2

...o corpo pesa em cada centímetro do espaço ocupado...



Fragmento nº 3

...ontem à noite sonhei que sonhava um sonho...


Fragmento nº 4

...não me verás, nem com mil olhos de minotauros famintos...



cortaruas, Desterro/São Paulo, julho/agosto de 2002.
Raspei-me a cara,
e agora me vejo nu no espelho,
sem aqueles prolixos fios que me faziam barba,
barba de tantos abismos e tantas marcas,
friamente descobertas pela ponta curiosa de uma navalha...

Agora se foram,
raspados e perdidos,
no corte preciso da lâmina afiada...

Minha pele?!
Minha pele não ficou intacta,
apareceram sulcos e precipícios,
de um rosto marcado por tantos vícios e tantas batalhas,
numa guerra sem vencidos ou perdidos,
somente dispersos feridos,
onde a luta não se revela com o outro,
mas consigo...

Raspei-me a cara,
e agora me vejo só e sem barba,
raspado na batalha cortante de todos os dias,
na evidência absoluta que a própria imagem refletida,
não passa de uma face cindida
por entes partidos e salivas navalhas.

Minha pele?!
Minha pele não ficou imaculada,
apareceram outros tantos vestígios de não sei quantas datas,
fitei novamente os olhos espelhos e revi o tempo de cada marca,
rasuras profundas, fendas sentidas, cicatrizes esquecidas...

Afinal!, são tantos os precipícios quanto as vidas...

Minha pele?!
Minha pele é pura escarificação de entes invisíveis,
cirurgiões incansáveis de uma carne nunca suturada,
emendo os retalhos e me vejo uma face multimultifacetada,
composta de tantas peles rasgadas
quanto a vertigem vivida
naquele infinito fundo
de olhar entrevisto
no redemoinho fugaz
da pia d’água.


cortaruas, Desterro, 21 de setembro de 2002.

segunda-feira, 25 de junho de 2007

Deteve-se ensimesmada sobre o mar de gente,
Grávida de muitos anos não paria um ente,
Imaginava sonhos em meio a vozes turvas,
Vislumbrava horizontes na superfície plena,
Seu olhar fitava distante o silêncio infinito,
Sua boca murmurava segredos de um tempo longínquo,
Trazia em sua pele as marcas de dedos indecisos,
Seus cabelos agitavam ventos de um espaço incontido,
Sua face velava sulcos abertos por lágrimas cortantes,
Seu corpo derramava luzes de um templo ensandecido,
Tudo era preciso naquele ente de carne, osso e vestígios...

Preciso como as poeirentas calçadas de seres precipitantes, periclitantes...
Preciso como as imensas avenidas de asfalto sujo e metais reluzentes,
Preciso como as decadentes torres de concreto e precipícios,
Preciso como as pedras partidas por entes sentidos,
Preciso como a bala perdida num ente caído,
Tão preciso como as imprecisas marcas dos dias vividos...

Deteve-se enfurecida sobre o mar de gente,
A cólera do outro respingava sobre sua fronte,
Já seu corpo não era como de qualquer ente,
De seus músculos brotavam facas e dentes,
Feroz e insistente, acirrava olhos facas para frente,
Inconseqüente como aquela adaga de lâmina mais pungente,
Avidamente como aqueles afiados dentes de sua pupila ardente...

Assim sobrevivia a grávida de muitos anos que não paria um ente...
Sempre ensimesmada com seu mar de gente,
Sempre alucinada em imagens remotas de entes feridos,
Por lâminas afiadas e dentes felinos,
Sua busca não era por peles desfiadas, mas por entes partidos...
Entes que já se foram,
E que sumiram em mil fiapos, trapos e desatinos...

Lançou-se implacável sobre o mar de gente,
Todo seu corpo convulsionava lágrimas de danação,
Seus olhos cuspiam faíscas e velhas navalhas,
Rodopiava vertiginosamente,
Precipitando-se sobre todos os entes,
Ferindo muitos doentes,
Cindindo muitos dormentes,
Atiçando muitos dementes,
Até que um destes delinqüentes,
Nem sequer pestanejou, desferiu logo balas inconseqüentes,
Matando aquela que um dia amou,
A grávida de muitos anos,
de um ente que nunca gerou.


cortaruas, São Paulo/Desterro, 26 de setembro de 2002.
O cego e o minotauro

O labirinto de cimento
Não esconde apenas o horizonte verde
Do por do sol lilás;
Esconde também entre seus infinitos precipícios de concreto
Cem mil olhos de minotauros famintos
Prontos a devorar aqueles corpos cansados e patéticos,
Prontos a arrancar com suas mandíbulas de fogo
As tripas pegajosas daqueles homens mais servis
Porque no labirinto de cimento
valem mais os animais que rastejam
do que homens caminhando sem distinção,
os cegos sabem dos caminhos, sabem de sua distinção,
sabem do labirinto,
sabem dos cantos mais sujos do labirinto,
sabem que no labirinto vivem também os minotauros,
mas os minotauros não comem cegos,
os minotauros preferem se alimentar de homens servis e decadentes,
pois existe um imenso rebanho de sua espécie,
no labirinto de cimento,
cem mil homens não valem um minotauro,
cem mil homens não valem um cego,
não valem o alimento que comem,
mas valem a bosta que cagam,
a merda que falam,
no labirinto de cimento,
os minotauros não são monstros porque não são servis,
monstros são os homens que aprenderam felizes o ofício da servidão,
monstros são aqueles homens que não sabem que são monstros,
porque estão mais ocupados em servir,
mais ocupados em comprar,
mais ocupados em usurpar do que sentir,
mais ocupados em morrer lentamente
do que viver loucamente,
absolutamente os homens são monstros
porque sabem que vão morrer e mesmo assim morrem todos os dias,
servem todos os dias,
os minotauros e os cegos não,
eles sabem que vão morrer e por isso vivem todos os dias,
todos os dias os cegos descobrem um novo lugar neste labirinto,
todos os dias os minotauros encontram homens felizes e o devoram com alegria,
todos os dias cegos e minotauros brindam o grande labirinto dos homens,
pois nesta arquitetura dos perdidos,
os cegos sabem dos seus lugares,
dos seus caminhos sujos e finitos,
sabem que os minotauros há muito tempo
acabaram com os cem mil Teseus e as cem mil Ariadnes,
sabem que os minotauros não são monstros, mas sim, o mais humano dos homens....

cortaruas, São Paulo/Desterro, 2002.
Quatro pontos orientam
a direção do homem no mundo.

Quatro outras direções
figuram na geografia mas não existem no mapa.

Os caminhos divergem para o desconhecido.

Os pontos que não existem indicam espaços mais precisos.

O território sem bandeira reúne almas famintas.

Os cacos dispersos denunciam a presença do monstro.

O rastro sem vestígio apenas revela a presença do absurdo.

Neste instante,
a precariedade do espaço entoa um cântico trágico.

As luzes já não brilham com tanta intensidade.

E o que vemos,
não passam de sombras sobre sombras.



cortaruas, Desterro, 27 de maio de 2002.
A casa em que vou habitar
mais se parece um forte.

As palavras que quero dizer
ainda não existem em substância.

Invento sentidos tentando preencher vazios que pousaram entre nós e os outros.

Tenho temor do desconhecido ser humano monstro.

Construo conceitos e muros
tentando proteger minhas próprias ilusões.

Porém,
os sinuosos caminhos insistem
no grande acontecimento do encontro.

A casa já não é um forte,
é apenas uma morada.


cortaruas, Desterro, outubro de 2001.

...a cada passo, cem passos...

A cada passo, cem passos,
passos dados ao acaso,
no solo dos (des)cuidados...

A cada passo,
cabis baixo o homem conta o dividendo dos enganados.

A cada passo,
solitário sonhamos o encontro tão esperado.

A cada passo, cem passos...
A cada passo, cem descompassos...

A cada passo,
uma pergunta, cem impossíveis respostas...

A cada passo,
é possível sentir a acidez do suspiro fatigado,
do gesto esfarrapado e de tantos olhares enviesados...

A cada passo,
à luz da escuridão e do cano prateado,
cem homens, mulheres e crianças são friamente descampados...

A cada passo,
amparados agora pelo asfalto sujo,
cem barracos são armados no absoluto gesto dos despejados...

A cada passo,
o martelo da justiça sentencia,
sonhar só é possível dentro da lei...

A cada passo,
já não queremos lembrar de onde vem tanta miséria,
se da falta de amor ou do excesso de direito...

A cada passo,
percebemos que já não são simples perguntas sem respostas,
mas interrogações descartadas, abandonadas...

A cada passo, cem passos...
A cada passo, cem descompassos...

A cada passo,
um murmúrio, cem olhares e cem beijos rasgados...

A cada passo,
um descarnado canta, cem cantos, cem sentidos...

A cada passo, um ronco sem segredos.
A cada passo, um enigma, centenas de mistérios...

A cada passo,
cem papéis são descolados, largados e jogados
no asfalto dos desencantados.

A cada passo,
há cem flores secas caídas no chão,
cem desamores fugindo do cão,
um grito clamando por atenção.

A cada passo,
um louco, uma puta,
um miserável pedindo por humilhação.

A cada passo,
sem pegadas, sem rastros,
cem destinos cansados,
porém, perpetuamente apressados, com-prensados.

A cada passo,
a copa da árvore balança ensaiando a dança dos ventos.

A cada passo,
um redemoinho de metal
atravessa a incomensurável avenida
oferecendo suas cores de plástico...

A cada passo,
cem prédios acendem simultaneamente,
cem luzes, espantando a escuridão.

A cada passo,
cem abraços apertados sussurram compreensão.

A cada passo,
cem estrelas despontam no céu,
uma lua desponta no olhar
e uma saudade brota no coração.

A cada passo,
cem viagens, cem canções,
uma palavra de consolação.

A cada passo,
cem versos amargos são escritos e abandonados.

A cada passo,
cem bêbados brindam a vida espantando a morte.

A cada passo,
um pássaro arranha-céu
mergulha velozmente para o infinito.

A cada passo,
a cada metro, em cada esquina,
uma densa nuvem de fumaça cobre as torres de cimento.

A cada passo,
no meio da multidão um segredo confessa solidão.

A cada passo,
cem retratos desbotados não revelam uma imaginação.

A cada passo,
aquele encontro tão esperado não quer mais compreensão.

A cada passo,
em cada sinal, em todas as ruas, em todos os bares,
cem crianças vendem coisas esperando por redenção.

A cada passo, cem quadras vazias,
A cada passo, cem avenidas coloridas,
A cada passo, cem palavras roubadas,
A cada passo, cem esperanças perdidas,
A cada passo, somos devorados pelo cimento monstro da criação.

A cada passo,
nós aqui,
no trânsito eterno das ilusões.


cortaruas, São Paulo, julho de 2002.