segunda-feira, 30 de julho de 2007

7 instantes de melancolia (dependendo da ocasião, alguns textos merecem ser revisitados, por mais piegas que sejam)

1

Semanas, dias e infinitas horas já se passaram,
sinto que os sentimentos não passam,
não querem passar e não pretendem seguir adiante.
A inércia como consolo, exaspera-me.
Ao sumidouro todos estes sentimentos diarréicos.
À fossa toda esta angústia.
À merda todo o passado.


2

Quanto amor estancado.
Quanta mágoa acumulada.
Somos filhos da intolerância.
Sobrinhos da miséria cotidiana.
E netos renegados das paixões frustradas.
Quanta solidão e tão pouco sentido.


3

A consumição rasga o corpo inteiro.
Espoliados somos da carne e dos desejos.
A fartura de tantas peles nunca é suficiente.
Os abraços enlaçados não querem exprimir nenhum afeto.
Quanto mais nos devoramos mais sentimos fome.
De tanto digerir o vazio de peles nos tornamos delgados.


4

O que vejo nos olhos são apenas sombras e penumbras.
Suas imagens refletem o abismo do deserto ocupado.
A sede do instante tátil nos lança à procura de um corpo.
O labirinto geográfico não quer revelar seus entes perdidos.
Cansados do impossível, descansamos à beira do córrego seco.


5

A medida do tempo da melancolia equivale à medida do tempo da insônia.
De tantas perdas e sonos mal dormidos construímos uma imensa desilusão.
O sonho da alusão não cabe nesta imensidão.
Inventamos outra coisa e descobrimos a encarnação.
Que por detrás de párias intenções, sempre existe uma insubordinação.
De entes que não se cruzam e não querem compreensão.


6

No caminho de cruzes ilhadas, muitas encruzilhadas mal cruzadas.
Os desterrados de corpos e sentimentos perdidos carregam solitários suas cruzes.
Suas fisionomias de entes delgados assustam qualquer um.
Como foi possível seres que eram de puras peles,
transformarem-se agora em ossos puros?


7

As peles perguntam pelo ente,
os ossos respondem que já foi.
Peles e ossos não se entendem, pois precisam do ente.
Ao final, a dor do ente não desmente e diz assim o último refrão:
a tragédia da vida não é dividida em atos,
é um ato contínuo.


cortaruas, Desterro, 05 de setembro de 2002.

quarta-feira, 25 de julho de 2007

...Sonhando acordado 2...(para ler ouvindo Cello Suites de Johann Sebastian Bach)

O dia amanheceu como todos os dias, a luz explodindo desde o firmamento, iluminando tudo que atravessasse seu caminho; mas sua precisão física em descortinar a escuridão, não possui a mesma eficácia quando se trata de seres, especialmente, os humanos...

(...)

Na grande polis de concreto, uma diversificada fauna de entes vê e se deixa ser vista na esperança de que alguém possa reconhecer aquilo que todos trazem dentro si, um pouco de humanidade e tudo de solidão... Embora fosse esse o desejo contido, todos, bem ou mal, sabem da imensa dificuldade que é encontrar e ser encontrado pela humanidade do outro, pela sua solidão...

(...)

Aqueles que se encontram sob a doce claridade da estrela solar, desafortunadamente acreditam que sua luz é suficiente para revelar o outro... Mas, ao contrário da fotografia e dos ditos da ciência, encontrar o outro não significa só enxergá-lo ou tocá-lo com as mãos... Sentir está para além do gesto físico da percepção banal e rasa do olhar... O próprio toque, que antes parecia ser a chave mestra que abriria os sentidos químicos que faria do outro uma entidade especial e singular no mundo, foi economicamente substituído pelo controvertido mercado de corpos...

(...)

Tudo está em exposição, tudo está à venda, tudo é uma mercadoria... E nesse grande espetáculo cultural, “seres humanos”, ou melhor, corpos humanos são tratados da mesma forma que qualquer outro objeto de consumo... vale a lei da oferta e da procura... vale a lei da mais valia do lucro... Não se trata de encontrar culpados, mas de constatar fatos... todos que servem e fazem o jogo desse sistema, perdem... e aqueles que acreditam no poder da hierarquia já perderam... será!?...

(...)

Afetos jamais se barganham...

(...)

Mas de nada adianta a consciência destas questões, porque todos já se encontram embriagados pelo gozo alienado do olhar... Ver, mais do que sentir, se tornou um vício, uma droga poderosa... Nas ruas estreitas do centro da capital ou nos grandes descampados de trânsito engarrafado, uma legião de flâneurs sai em busca de seu obscuro objeto de desejo... Mesmo comprimidos pela multidão e afogados pelo duro trabalho cotidiano, continuam entorpecidos... Inconscientemente ou conscientemente motivados pelas pulsões visuais mais primitivas e arcaicas, deixam se tragar pelo buraco abissal aberto no espaço pelo corpo do outro... Mas, o engano é fatal quando descobrem que o corpo que ali se encontrava não passava de um simulacro manequim de suas próprias fantasias, de suas caprichosas expectativas de redenção, amor e encantamento...

(...)

E quanto mais olhamos, menos enxergamos... e, tragicamente, na mesma medida, quanto mais tocamos menos sentimos... e nossa humanidade a cada dia se desgasta com o excesso de civilização, propaganda e profissionalismo servil... e de nada serve ser um bom profissional, quando o mais importante se perdeu, a consciência de que todos servimos ao mesmo sistema ordinário que nos aprisiona, corrompe, divide e escraviza... e, mesmo sabendo disso tudo, comemos uns aos outros na vã tentativa de salvar-nos a nós mesmos...

(...)

Solidariedade se tornou uma palavra vazia e descartável...

(...)

De fato, nunca fomos humanos, forjamos uma idéia abstrata de ser humano e desde então tentamos atingi-lo... e já se passaram dois mil anos dessa longa história... e aqui nos encontramos cuspindo uns nos outros nossas neuroses de culpa e fantasias egocêntricas... e a cada dia nos tornamos fracos com tantas perdas de sentido, de corpos que se atravessam atravessados pelo secreto desejo de possuir sem antes sentir o mistério abstrato e original que cada um carrega dentro de si... e a perda é total quando subestimamos esses corpos, subestimamos o que sentem, suas histórias de afetos e desafetos... mas há uma esperança, quiçá deveríamos furar nossos olhos... ou quebrar o espelho que nos reflete... ou rasgar a fotografia que nos representa... apagar de vez o nome que nos identifica... nos afogarmos na própria solidão até aprender que para reconhecer o outro, devemos amar e respeitar sua solidão, pois é justamente esse silêncio atemporal e enigmático que mais nos aproxima da idéia que criamos de ser humano...

(...)

...nós somos sozinhos...


cortaruas, Iquiririm/São Paulo, 25 de julho de 2007.