segunda-feira, 25 de junho de 2007

Deteve-se ensimesmada sobre o mar de gente,
Grávida de muitos anos não paria um ente,
Imaginava sonhos em meio a vozes turvas,
Vislumbrava horizontes na superfície plena,
Seu olhar fitava distante o silêncio infinito,
Sua boca murmurava segredos de um tempo longínquo,
Trazia em sua pele as marcas de dedos indecisos,
Seus cabelos agitavam ventos de um espaço incontido,
Sua face velava sulcos abertos por lágrimas cortantes,
Seu corpo derramava luzes de um templo ensandecido,
Tudo era preciso naquele ente de carne, osso e vestígios...

Preciso como as poeirentas calçadas de seres precipitantes, periclitantes...
Preciso como as imensas avenidas de asfalto sujo e metais reluzentes,
Preciso como as decadentes torres de concreto e precipícios,
Preciso como as pedras partidas por entes sentidos,
Preciso como a bala perdida num ente caído,
Tão preciso como as imprecisas marcas dos dias vividos...

Deteve-se enfurecida sobre o mar de gente,
A cólera do outro respingava sobre sua fronte,
Já seu corpo não era como de qualquer ente,
De seus músculos brotavam facas e dentes,
Feroz e insistente, acirrava olhos facas para frente,
Inconseqüente como aquela adaga de lâmina mais pungente,
Avidamente como aqueles afiados dentes de sua pupila ardente...

Assim sobrevivia a grávida de muitos anos que não paria um ente...
Sempre ensimesmada com seu mar de gente,
Sempre alucinada em imagens remotas de entes feridos,
Por lâminas afiadas e dentes felinos,
Sua busca não era por peles desfiadas, mas por entes partidos...
Entes que já se foram,
E que sumiram em mil fiapos, trapos e desatinos...

Lançou-se implacável sobre o mar de gente,
Todo seu corpo convulsionava lágrimas de danação,
Seus olhos cuspiam faíscas e velhas navalhas,
Rodopiava vertiginosamente,
Precipitando-se sobre todos os entes,
Ferindo muitos doentes,
Cindindo muitos dormentes,
Atiçando muitos dementes,
Até que um destes delinqüentes,
Nem sequer pestanejou, desferiu logo balas inconseqüentes,
Matando aquela que um dia amou,
A grávida de muitos anos,
de um ente que nunca gerou.


cortaruas, São Paulo/Desterro, 26 de setembro de 2002.

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