terça-feira, 26 de junho de 2007

À insônia muriliana
para Murilo Mendes

Negar o sono e permanecer acordado povoando o entre mundos de monstros insoniados ou dormir e esquecer tudo, substituindo o princípio de realidade pelo princípio de prazer e, com isso, libertar nossa imaginação da consciência normopata de uma realidade supra-vigiada para enfim refugiar-nos numa terra estrangeira?!
Negar o sono ou dormir efemeramente para que os opostos não encontrem mais razões justas para perturbar nossa jornada num território nunca antes explorado no mundo dos sonhos sem culpa?!
A complexidade sensível. O duelo dos opostos em fragmentos poetatéticos. Devaneios surreais de imagens em ritmos acelerados pelo tempo eletrônico do "bit" e do bisturi aéreo.
A insônia muriliana fatigada pelo tempo colorido em sobre-oposição do tempo em preto-branco carmesim.
Negar o sono ou morrer definitivamente até que os sons tecnificados de nossa urb invadam nossos espaços condicionados de cimento quadrado e cores pastéis, para ali depositar toda sua atmosfera contaminada de detritos banais, delírios edificadores e objetivos aniquiladores?!
A insônia da luz que se lança sem parar na tentativa de deter a obscuridade. A insônia do farol. A insônia do barco, que busca incessantemente um porto seguro. A insônia do porto seguro que nunca segurou nada além do seu próprio porto... A insônia da girafa que come para não ser comida...
Negar o sono ou morrer diante de todas as circunstâncias mítica-históricas que dizem: um dia o herói retornará, não para nos salvar, mas para se juntar aos milhares de heróis vencidos na demência de salvar o mundo?!
"Um verme rói - enorme roer - / Um verme rói minuciosamente / Desde que o tempo sentou-se sobre si / A trombeta ovóide".[1]
A insônia do verme ecumênico... que pensa conciliar o particular com o universal. A insônia da tesoura a insônia do dicaz, pois, quando a tesoura corta... o dicaz dá gargalhada... irônico cinismo de quem acredita apenas na mentira universal. A insônia do plantão 24 horas na televisão da janela mundial. A insônia do sapato que esmaga sem remorsos o destino imprevisível de baratas voadoras... A insônia do revólver-bala que abala as estruturas mais sólidas com sua música fúnebre e definitiva... A insônia de Heráclito nostálgico e cabisbaixo sentado a beira-rio...
A topografia da insônia abarca o universal e o particular, o branco, preto e colorido, as ondas vibratórias das constelações perdidas, a consciência da moral penitente, o olhar melancólico do roedor, o ruído histérico do faminto, a bala perdida do policial notívago, a carruagem dos tempos, os ready-made de Duchamp, os rituais dos aborígenas australianos, o insoniar do morto milenário, o feltro banhado de Beuys, o nó da espadarte de dois gumes, a insônia do diafragma com problemas de respiração, a insônia obsessiva de escrever e descrever situações de improviso, mas que incomodam, acomodam e não deixam dormir.
Negar o sono ou morrer, até que as astronaves da insônia venham e declarem o juízo final da insônia.

cortaruas, fevereiro de 2001.

Nenhum comentário: