quarta-feira, 27 de junho de 2007

Sonhando acordado 1:

...Manuel de Barros passou por aqui hoje; li com ele o mesmo livro que lemos na praia aquele dia; na verdade, interessava ao poeta ler um ou dois trechos, rapidamente, antes de partir assim como chegou, de supetão; mas, antes mesmo do poeta encontrar a parte do grilo, pois acredite, ele desejava se lembrar em que circunstância poética se encontrava o inseto, a primeira frase que leu logo que abriu seu livro foi: "Com pedaços de mim eu monto um ser atônito".; o peso destas palavras já não o comoviam mais como da primeira vez quando as tinha escrito, assim expressavam o vazio de seus olhos que pareciam flutuar desde o fundo de sua alma; nem sinal de confusão ou perturbação estética; sua pausa silenciosa e quase invisível no tempo se revelava uma tortura para mim; se para ele essa questão já não era mais nenhum problema já que sua poesia era a resposta, para mim ainda faltava reunir os pedaços para construir meu ser atônito na poesia, na arte. Barros, com sua poesia arqueológica das imagens da natureza e da cultura já havia superado há muito tempo os dilemas existências criados pelo labirinto da filosofia ocidental, do capitalismo transcontinental; para ele o caminho do ser é tão simples quanto construir um brinquedo com palavras: “Besouros não trepam no abstrato.” (...) Continuamos a procura pelo grilo nas páginas e ainda deu pra ler, an passan, “O menino de ontem me plange.”; lembrei que quando lemos esta parte, submergidos pelo ócio da areia do forte, nos olhamos com cara de interrogação já que não sabíamos o significado da palavra plange. Significa chorar lamentando-se, soar tristemente. Agora sabemos e assim posso reunir mais um pedaço de mim em você. E o velho Barros continuava atrás do grilo e eu atrás do velho, de suas palavras e na página 15 do Livro sobre nada, 1ª PARTE, Arte de infantilizar formigas, terceiro ponto (3.), 5ª linha, o grilo surge e com ele o sorriso cúmplice e camarada do poeta; sua procura tinha terminado e o sentido da sua origem na trama poética, revelada enigmaticamente através do som murmurado de sua voz atemporal; “(...) Grilo é um ser imprestável para o silêncio”., mas quem “falava bobagens conspícuas” era o doutor - emendou. Sorriu para mim e foi embora. (...) Qual o sentido dessa procura? Intui que esta aparição imagética deste mestre das palavras de encantar foi mais uma montagem poética para nos deixar atônito, nos disjuntar... Mas, sem pedaços de ser, de mim ou de nós...
Embora faltem muitos pedaços do meu próprio quebra-cabeça existencial, sua presença invisível naquele instante poético me deixou ainda mais atônito, perturbado com quantas coisas temos que fazer e percorrer para superarmos tal estado de coisas fúteis e banais... Ao cabo desta experiência ficcional, entendi que quando superarmos este estado de perturbação estética e letargia mental, Barros retornará com seu sorriso cúmplice e nos dirá novamente que o “Grilo é um ser imprestável para o silêncio”, mas que é o doutor quem fala bobagens conspícuas....

cortaruas, 08 de junho, Iquiririm/Vila Indiana/Butantã/São Paulo, 2007.

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